“É inegável que a função de Escrivão de Polícia é arcaica e desnecessária, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico e o entendimento jurídico do procedimento inquérito policial.” Leia o excelente texto sobre uma valorização do cargo de Escrivão de Polícia.
A Polícia Federal é a única polícia de ciclo completo no Brasil, mas, equivocada e/ou propositadamente, funciona como se apenas fosse polícia judiciária. Tanto é que a Constituição Federal prevê em seu artigo 144 a carreira, no singular, e, até hoje, ainda mantém sua organização espelhada nas policias civis estaduais, quando o correto seria o inverso, ou seja, que as polícias civis se espelhassem na Polícia Federal. Entre esses cargos, um bem característico deste “ramo” da atividade policial pátria é o de Escrivão de Polícia Federal.
Em que pese, atualmente, não possuir atribuição legal, uma vez que fora declarada ilegal a Portaria 523/89 do Ministério do Planejamento, deve-se atentar para estas precárias atribuições, as atividades que de fato executam o profissional de escrivania policial, bem como às previstas ao Escrivão, função essencial ao Juiz, previsto no CPC e CPP, que é utilizado de forma análoga à Polícia Judiciária.
Em resumo, ao Escrivão de Polícia, lato sensu, é atribuída a lavratura de termos oficiais e formalidades produzidas no curso das atividades de Polícia Judiciária, em especial a formalização do procedimento administrativo, pré-processual, básico da arcaica organização de Polícia Judiciária do Brasil, o Inquérito Policial.
Apesar da doutrina pátria entender indubitavelmente que o inquérito policial é mero procedimento administrativo, tanto que é dispensável, ele hoje é regido por diversos formalismos e por isto a importância fundamental do Escrivão de Polícia.
Se em nossa prática investigativa o Delegado de Polícia é entendido como o “investigador” que irá inserir no inquérito policial questões fáticas da investigação criminal e enquadrá-los no direito material, ao Escrivão de Polícia recai a responsabilidade da formalização dos atos e termos oficiais produzidos no curso do procedimento. De forma analógica, é o direito processual do inquérito policial e a ele cuida a forma do procedimento enquanto, ao Delegado, é responsabilidade o direito material da investigação lançado nesta forma pré-processual produzida pelo Escrivão.
É inegável que a função de Escrivão de Polícia é arcaica e desnecessária, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico e o entendimento jurídico do procedimento inquérito policial.
No passado distante, o escrivão que “lavra termos” foi pensado em uma época em que poucos cidadãos eram letrados e não eram capazes de passar contratos, sentenças e depoimentos do meio oral para o meio físico escrito. O nosso CPP, de 1941, ainda manteve a figura do escrivão necessário em razão da difícil lavratura mecânica ou manual de termos que exigia um profissional técnico específico para a datilografia dos termos oficiais. Hoje, com o desenvolvimento das tecnologias da informação, não se pode aceitar um profissional para, na prática, digitar a outro profissional, tendo em vista as facilidades dos computadores, laptops, tablets ou smartphones e demais tecnologias informatizadas.
Entendendo que a lavratura de um processo, por suas características de documento público e presunção de veracidade, pode exigir um profissional que chancele tal caráter diferenciado de fé pública aos documentos nele produzidos. No entanto, é absurdo formalizar o procedimento administrativo policial de forma burocrática, organizando a peça investigativa que é o inquérito policial, mero procedimento administrativo, inquisitorial, isento de contraditório e dispensável, que inclusive não pode servir como prova exclusiva para condenação de ninguém, como se processo fosse.
Exigir forma rígida, ao que deveria ser célere é no mínimo afronta aos princípios básicos da administração pública como celeridade, eficiência, e por fim é até cercear a acesso à justiça.
Para exemplificar melhor este absurdo, à própria Justiça é inferido o princípio da instrumentalidade das formas em que os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial. O ordenamento jurídico pátrio adotou o princípio da liberdade das formas, onde os atos processuais não dependem de forma, exceto quando legalmente cominadas.
Ora, se a própria Justiça que exerce a jurisdição através de processo não exige forma prescrita, quando não legalmente atribuída, o que dizer, de um procedimento administrativo e pré-processual, isento de jurisdição.
Cabe ressaltar, por fim, que a atividade de escrivão é tão arcaica que na própria justiça a terminologia “Escrivão” tem sido retirada, por remeter a questões antiquadas e hoje desnecessárias, vide a informatização processual e o processo virtual. Como exemplo, hoje na Justiça Federal, a figura do Escrivão é chamada de Diretor de Secretaria, sendo uma função atribuída a técnicos ou analistas. O Escrivão de Polícia está equivocadamente instituído como cargo, e cargo policial, quando na verdade deveria ser uma função.
De qualquer maneira, a Polícia Judiciária é organizada desta forma antiquada, burocrática e formal e por isto a existência do Escrivão ainda é deveras pertinente. Mas talvez por esta desnecessidade notória, o profissional público Escrivão de Polícia é de fato, dentro da Polícia Federal, um dos mais atingidos por assédio moral, doenças ocupacionais e psíquicas como, por exemplo a depressão. Os “chefes” da Polícia Federal, os Delegados de Polícia, geralmente entendem o Escrivão como seu secretário particular e por vezes desviam a função do mesmo, desvalorizando sua atribuição, de forma humilhante profissional e moralmente.
Com elevada frequência, ocupantes do cargo de delegado referem-se aos escrivães, responsáveis pela carga dos inquéritos policiais, por eles presididos, como “meu escrivão”, forma pessoal e pejorativa de expressar em relação ao profissional de escrivania. O Escrivão de Polícia Federal é servidor público federal, cujo salário é pago pelos cofres públicos, possuindo cargo efetivo ligado à administração direta. Ao fazer esta referência de posse particular deste profissional, o Delegado de Polícia desrespeita tanto o servidor público quanto o cargo público e, por fim, a própria administração pública, uma vez que trata pessoalmente, como seu funcionário, aquele que na verdade possui vínculo jurídico e único com o ente federativo.
Neste sentido, os presidentes dos procedimentos administrativos inquisitoriais atribuem ilegalmente aos escrivães de polícia, profissionais de nível superior, de acordo com a redação dada pelo artigo 2º lei 9.266/96, atividades típicas de secretariado. Não raras vezes, os Delegados de Polícia Federal exigem que Escrivães de Polícia Federal controlem sua agenda pessoal, carreguem os inquéritos tanto quando conclusos ou quando despachados, busquem materiais de trabalho para o delegado, recebam e organizem expedientes pessoais direcionados aos delegados, realizem atos do presidente do inquérito para que este, posteriormente, só assine, entre outros desvios.
Em sentido mais amplo, o próprio ato de produzir memorandos e ofícios, no curso de inquéritos policiais para que outro profissional assine é ilegal e imoral. O simples ato de expedir texto já produzido por outro profissional, é atividade de secretariado e não de Escrivão já que não são Termos a serem lavrados. O escrivão e nenhum outro profissional de nível superior da administração pública pode fazer um expediente para que outro profissional o assine.
Em outro aspecto, o ato de copiar e colar um texto produzido por outro servidor público, para que este segundo somente assine o documento, não é lavratura, mas sim um mero ato de secretariado, inadequado às exigências de ambos cargos.
Apesar de parecer absurdo para alguns, tratar o escrivão de polícia federal como secretário é comum e vem de um costume aceito historicamente, tanto que alguns delegados, realmente acreditam que é função do escrivão “secretariar” os atos dos delegados de polícia. A função do Escrivão é lavrar termos oficiais e não “digitar” para o Delegado assinar. Desta maneira, urge a necessidade de confronto, posicionamento profissional e convencimento de quais são as atribuições do Escrivão de Polícia Federal e qual a forma de tratamento profissional que este deve receber.
Tendo em vista a falta de atribuições e a iminente produção da Lei Orgânica da Polícia Federal faz-se necessária a maior participação dos Escrivães em sua elaboração. Em um primeiro momento, seria interessante a modernização da Polícia Federal, com a desburocratização do Inquérito Policial, promovendo sua celeridade e utilização de tecnologia da informação para isto. A consequência inerente desta evolução seria a extinção do cargo Escrivão de Polícia, com substituição por um cargo de nível médio, NÃO POLICIAL, para realizar as atribuições de secretariado ilegalmente acometidas ao Escrivão de Polícia e a criação da função de Escrivão para os cargos policiais ou administrativos a fim de proceder à lavratura de termos que exigem caráter de oficialidade, como por exemplo um AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE ou um AUTO DE APREENSÃO.
Fonte: ANEPF